Nevara durante os dois últimos dias, mas ao fim da tarde o céu ficara limpo de nuvens e as estrelas brilhavam mais durante a noite gelada de Dezembro.
Depois da ceia planeavam-se as actividades da família para o dia seguinte.
- O António e o Alberto iriam limpar oliveiras para olival dos Rechões e trariam duas cargas de rama para a corte de Vale de Serva onde o rebanho ficaria amanhã. Por sua vez o Virgílio levaria o rebanho de ovelhas lá para a Escabeda, mesmo que pouco encontrassem para comer, pelo menos arejavam.
- O Aquiles ia com os cordeiros para a trigueira de Vale da Moira e a Raquel ficaria em casa a ajudar a mãe a fazer as filhós e dava um salto à horta da Devesa com o Carlos para apanharem uma carga de nabos. Como não havia escola, o Luís levava as vacas para o lameiro de Campo Redondo.
Quem dava as ordens era a mãe, tinha ficado viúva com oito filhos pequenos, o mais velho tinha agora 19 anos e, um dos mais novos, o Artur tinha morrido logo a seguir ao pai.
Agora quem vai acomodar o gado, perguntou o Alberto que era o mais velho. Levantaram-se dois, mas já à porta o Carlos gritou pelo Luís para que trouxesse o lampião e uma faca para cortar uma abóbeda para deitar às mulas.
Os outros ficaram à volta da lareira, enquanto a Raquel, que acabara de arrumar a loiça, preparava uma vianda para os porcos.
Ainda assaram umas castanhas para o final do serão e depois foi toda a gente para a cama. Alguns já estavam a caminho quando a mãe bem alto avisou da cozinha que amanhã não havia merenda, nem almoço para ninguém, era dia de jejum.
O Luís foi o primeiro a deitar-se, mas não conseguia dormir. A cama estava fria, mas não era essa a razão. Amanhã era dia de Consoada, véspera de Natal, já andava a prepará-la há mais de duas semanas. Também estava contente porque não havia escola e podia ir com as vacas para o lameiro, apanhar míscaros e assá-los, ou ir com os cordeiros para o marfolho do trigo e vê-los brincar e saltar. Eram a sua perdição e quando podia, pegava neles ao colo, sempre que os irmãos não viam.
Já noite alta adormeceu, pedindo uma coisa ao menino Jesus, queria saber como seria o céu. O senhor padre na catequese falara que era um lugar com luzes ao sol a brilhar, tudo muito resplandecente e desde então esta ideia martelava-lhe a cabeça.
Ainda o sol não tinha nascido e já toda a gente estava a pé. Até o Luís e nem se queixou de não levar merenda, foi abrir a porta da curralada e soltou as vacas e vai de tocá-las para Campo Redondo, era ainda meia hora de caminho.
Quando já tinha metido as vacas no lameiro, despontou o sol e foi quando reparou nos carvalhos, grandes e pequenos estavam cheios de cristais pendurados das pontas dos galhos, que reflectiam a luz do sol em milhares de cores, tonalidades e cambiantes.
Nunca tinha visto nada assim, ficou embevecido e até se esqueceu de aquecer as mãos na fogueira que fizera. Correu pelos campos fora para ver se nos outros lameiros também havia luzes dependuradas das árvores, e havia.
Voltou para junto dos animais, aqueceu as mãos e os pés, sem descalçar as botas. Mas quando olhou novamente a visão tinha desaparecido. O calor do sol derretera as estalactites de gelo formadas pela neve derretida e pela geada durante a noite.
- Não importa, agora já sei como é o céu, dizia para consigo.
Nunca mais eram horas de regressar a casa para contar à mãe e aos irmãos o que tinha visto, eles não sabiam como era o céu.
Quando o sol já ia muito baixo, reuniu as vacas e foi levá-las a beber, ele também sentia fome, apeteceu-lhe beber água na fonte e comer umas castanhas, que encontrara debaixo do castanheiro grande, mas lembrou-se da recomendação da mãe, era dia de jejum.
O cheiro a polvo cozido sentia-se à porta de casa e quando entrou deparou com a mesa já posta e uma grande travessa de filhós polvilhadas de açúcar e canela em cima de um banco na cozinha.
- Posso comer uma?
- Não podes, não senhor - respondeu a irmã, atarefada com um prato de rabanadas.
- Também não te conto um segredo.
- Espera só um pouquinho, os teus irmãos estão a chegar e vamos já para a mesa, meu filho, foi dizendo a mãe, enquanto lhe tirava a boina da cabeça e lhe fazia uma carícia.
E não contou, não contou a ninguém, havia de contar à mãe, mas só depois da ceia.
Passado um bocado, ouviu-se a voz da Raquel:
- Vamos para a mesa.
De volta da mesa, todos de pé, rezaram pelo pai, pelos avós e pediu-se saúde e a graça de Deus para os de casa e depois para todo o mundo, só depois a mãe começou a servi-los. O lume crepitava forte aquecendo a casa, lá fora não havia ninguém na rua.
O polvo cozido e as batatas estavam uma delícia, e os toros de couve tronchuda com o molho de azeite, vinagre, colorau e alho criavam ainda mais apetite. Havia muitos meses que não se comia polvo em casa, mas hoje chegava para todos.
No fim da ceia os mais velhos foram acomodar o gado e depois juntaram-se aos demais rapazes da aldeia, que com um carro de bois arrebanhavam lenha pelas portas para fazerem a fogueira de Natal em frente ao adro da igreja.
Era uma fogueira enorme que ardia durante toda a noite de Consoada e todo o dia de Natal, às vezes entrava pela noite do dia 25 a arder. Os rapazes reuniam-se em volta dela, e ali ficavam depois da Missa do Galo, quer chovesse quer nevasse.
Só ficara a mãe com o Luís e a Raquel, à volta do lume onde ardia um enorme cepo de carvalho.
- Conta lá o teu segredo, disse a Raquel cheia daquela curiosidade feminina própria dos seus 15 anos.
- Só conto à mãe.
Aproximou-se mais da mãe e na inocência dos seus sete anos contou, em voz baixa, mas que dava para outros ouvirem, como o Menino Jesus lhe mostrara o céu. Quando acabou, a irmã ia dar uma gargalhada, mas a mãe arregalou-os olhos pedindo-lhe silêncio, ele abriu a boca e esfregou os olhos em sinal de cansaço.
Então a mãe pegou nele ao colo e levou-o para a cama, quis rezar com ele a oração ao anjo da guarda, mas já dormia e só quando ela lhe desprendeu a mão da sua e lhe aconchegava a roupa balbuciou: -Era o céu não era mãe? - e dormiu.
Octávio Pereira
Felg. Dez. 2005
Depois da ceia planeavam-se as actividades da família para o dia seguinte.
- O António e o Alberto iriam limpar oliveiras para olival dos Rechões e trariam duas cargas de rama para a corte de Vale de Serva onde o rebanho ficaria amanhã. Por sua vez o Virgílio levaria o rebanho de ovelhas lá para a Escabeda, mesmo que pouco encontrassem para comer, pelo menos arejavam.
- O Aquiles ia com os cordeiros para a trigueira de Vale da Moira e a Raquel ficaria em casa a ajudar a mãe a fazer as filhós e dava um salto à horta da Devesa com o Carlos para apanharem uma carga de nabos. Como não havia escola, o Luís levava as vacas para o lameiro de Campo Redondo.
Quem dava as ordens era a mãe, tinha ficado viúva com oito filhos pequenos, o mais velho tinha agora 19 anos e, um dos mais novos, o Artur tinha morrido logo a seguir ao pai.
Agora quem vai acomodar o gado, perguntou o Alberto que era o mais velho. Levantaram-se dois, mas já à porta o Carlos gritou pelo Luís para que trouxesse o lampião e uma faca para cortar uma abóbeda para deitar às mulas.
Os outros ficaram à volta da lareira, enquanto a Raquel, que acabara de arrumar a loiça, preparava uma vianda para os porcos.
Ainda assaram umas castanhas para o final do serão e depois foi toda a gente para a cama. Alguns já estavam a caminho quando a mãe bem alto avisou da cozinha que amanhã não havia merenda, nem almoço para ninguém, era dia de jejum.
O Luís foi o primeiro a deitar-se, mas não conseguia dormir. A cama estava fria, mas não era essa a razão. Amanhã era dia de Consoada, véspera de Natal, já andava a prepará-la há mais de duas semanas. Também estava contente porque não havia escola e podia ir com as vacas para o lameiro, apanhar míscaros e assá-los, ou ir com os cordeiros para o marfolho do trigo e vê-los brincar e saltar. Eram a sua perdição e quando podia, pegava neles ao colo, sempre que os irmãos não viam.
Já noite alta adormeceu, pedindo uma coisa ao menino Jesus, queria saber como seria o céu. O senhor padre na catequese falara que era um lugar com luzes ao sol a brilhar, tudo muito resplandecente e desde então esta ideia martelava-lhe a cabeça.
Ainda o sol não tinha nascido e já toda a gente estava a pé. Até o Luís e nem se queixou de não levar merenda, foi abrir a porta da curralada e soltou as vacas e vai de tocá-las para Campo Redondo, era ainda meia hora de caminho.
Quando já tinha metido as vacas no lameiro, despontou o sol e foi quando reparou nos carvalhos, grandes e pequenos estavam cheios de cristais pendurados das pontas dos galhos, que reflectiam a luz do sol em milhares de cores, tonalidades e cambiantes.
Nunca tinha visto nada assim, ficou embevecido e até se esqueceu de aquecer as mãos na fogueira que fizera. Correu pelos campos fora para ver se nos outros lameiros também havia luzes dependuradas das árvores, e havia.
Voltou para junto dos animais, aqueceu as mãos e os pés, sem descalçar as botas. Mas quando olhou novamente a visão tinha desaparecido. O calor do sol derretera as estalactites de gelo formadas pela neve derretida e pela geada durante a noite.
- Não importa, agora já sei como é o céu, dizia para consigo.
Nunca mais eram horas de regressar a casa para contar à mãe e aos irmãos o que tinha visto, eles não sabiam como era o céu.
Quando o sol já ia muito baixo, reuniu as vacas e foi levá-las a beber, ele também sentia fome, apeteceu-lhe beber água na fonte e comer umas castanhas, que encontrara debaixo do castanheiro grande, mas lembrou-se da recomendação da mãe, era dia de jejum.
O cheiro a polvo cozido sentia-se à porta de casa e quando entrou deparou com a mesa já posta e uma grande travessa de filhós polvilhadas de açúcar e canela em cima de um banco na cozinha.
- Posso comer uma?
- Não podes, não senhor - respondeu a irmã, atarefada com um prato de rabanadas.
- Também não te conto um segredo.
- Espera só um pouquinho, os teus irmãos estão a chegar e vamos já para a mesa, meu filho, foi dizendo a mãe, enquanto lhe tirava a boina da cabeça e lhe fazia uma carícia.
E não contou, não contou a ninguém, havia de contar à mãe, mas só depois da ceia.
Passado um bocado, ouviu-se a voz da Raquel:
- Vamos para a mesa.
De volta da mesa, todos de pé, rezaram pelo pai, pelos avós e pediu-se saúde e a graça de Deus para os de casa e depois para todo o mundo, só depois a mãe começou a servi-los. O lume crepitava forte aquecendo a casa, lá fora não havia ninguém na rua.
O polvo cozido e as batatas estavam uma delícia, e os toros de couve tronchuda com o molho de azeite, vinagre, colorau e alho criavam ainda mais apetite. Havia muitos meses que não se comia polvo em casa, mas hoje chegava para todos.
No fim da ceia os mais velhos foram acomodar o gado e depois juntaram-se aos demais rapazes da aldeia, que com um carro de bois arrebanhavam lenha pelas portas para fazerem a fogueira de Natal em frente ao adro da igreja.
Era uma fogueira enorme que ardia durante toda a noite de Consoada e todo o dia de Natal, às vezes entrava pela noite do dia 25 a arder. Os rapazes reuniam-se em volta dela, e ali ficavam depois da Missa do Galo, quer chovesse quer nevasse.
Só ficara a mãe com o Luís e a Raquel, à volta do lume onde ardia um enorme cepo de carvalho.
- Conta lá o teu segredo, disse a Raquel cheia daquela curiosidade feminina própria dos seus 15 anos.
- Só conto à mãe.
Aproximou-se mais da mãe e na inocência dos seus sete anos contou, em voz baixa, mas que dava para outros ouvirem, como o Menino Jesus lhe mostrara o céu. Quando acabou, a irmã ia dar uma gargalhada, mas a mãe arregalou-os olhos pedindo-lhe silêncio, ele abriu a boca e esfregou os olhos em sinal de cansaço.
Então a mãe pegou nele ao colo e levou-o para a cama, quis rezar com ele a oração ao anjo da guarda, mas já dormia e só quando ela lhe desprendeu a mão da sua e lhe aconchegava a roupa balbuciou: -Era o céu não era mãe? - e dormiu.
Octávio Pereira
Felg. Dez. 2005
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